Esse livro é uma edição da enciclopédia Pássaros do Brasil, que me foi dado pelo meu pai antes de seu falecimento.
Desde criança me interesso por suas ilustrações coloridas e detalhadas de cada ave. Recentemente, o redescobri pelas marcas que o tempo deixou em suas páginas. São fantasmas dessas ilustrações sobre o texto.
Se antes me interessava pela presença desses pássaros, hoje sua ausência é o que mais me fascina. São marcas pela diferença de acidez de cada papel, acumuladas pelo tempo. Estão sobre um texto também antigo.
Quase como a premonição de uma ausência, o apagamento de cada espécie. O livro me foi presenteado quando meu pai ainda estava vivo.
Ele distribuiu alguns de seus pertences quando acreditava que seu próprio fim estava próximo.
Na dedicatória, escreveu “Cantar é com os passarinhos”. Curioso, já que ele mesmo era também, entre outras coisas, um cantor e assobiava muito bem, até imitando o canto dos pássaros.
Eu mesma não consigo – nem cantar nem assobiar. Pergunto aos amigos se alguém saberia, e recebo poucas respostas. Talvez seja um talento antiquado. Em algum momento meu pai criou passarinhos, mas dentre as muitas histórias que ele me contava, não sei se essa é verdadeira.
Esse livro, não tenho lembrança de lê-lo. Faço isso agora.
O autor, Eurico Santos, foi um naturalista brasileiro e grande divulgador de ciências, publicando mais de 50 obras. Essa publicação de 1979, parte de uma enciclopédia reunida pela Editora Itatiaia tinha como intenção difundir o conhecimento científico para um público leigo. De fato, sua linguagem é romantizada, atribuindo as aves até mesmo qualidades morais. Seu valor está em ser uma presença em momento de escassa bibliografia, e popularizado informações de difícil acesso até então. Como por exemplo, popularizar a classificação de pássaros entre os que cantam e os que gritam.
O livro comenta sobre a falta de conhecimento dos brasileiros sobre sua própria fauna, e ao um grande interesse estrangeiro. “O colono estrangeiro é um exterminador de passarinhos”, diz ele na página 12, demonstrando ainda marcas de uma herança de exploração colonial. Aqui ainda vale ler a passagem de Eurico pelo Rio Grande do Sul, na página 171. “Em Caxias e Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, quando lá estive há cerca de 14 anos, visitando a região vinhateira, causou-me surpresa a ausência quase absoluta de pássaros. Soube então que a colônia estrangeira de lá havia devorado a passarinhada com fubá”.
Na introdução da enciclopédia, ainda, o autor diz: “Nossas crianças, até as das grandes capitais, como Rio e São Paulo, não têm ideia de um jardim zoológico moderno e, quando querem ver os representantes da nossa fauna, só vão encontrá-los empalhados nos mostruários dos museus.”
Me pergunto se não é uma questão de tempo, o que difere um zoológico e um museu? Existências que apontam seu próprio fim – como meu pai me dando esse livro. Uma passagem premonitória, uma questão de tempo.
Curiosamente, toda a chegada dos portugueses foi anunciada por eles, os pássaros que cantam. Em suas cartas, Pero Vaz de Caminha relata: “Pela manhã topamos aves que chamam fura-buchos, e neste dia, à hora de vésperas houvemos vista de terra.”
Lhe mostrariam o caminho, se soubessem que mais tarde estes destruíram parte de sua casa?
Anos após essa chegada dos portugueses, estabeleceram-se aqui, e fundam algumas vilas. Uma delas era Ararapira: lugar das araras. Citada por Arthur Neiva no prefácio dessa edição, em 1979, já não se encontrava mais araras na cidade.
Curiosamente, hoje, nem seres humanos.
A cidade é uma cidade fantasma, sendo apagada pelo mar, em processo de erosão. Onde antes araras se abrigavam, deu lugar as casas, hoje também abandonadas. Existe aí um ciclo de extinções, atravessados por uma falsa ideia de progresso.
Alguns apontam que o também extinto Museu Nacional, teve sua origem na popularmente chamada Casa dos Pássaros. Criada pelo Vice-Rei D. Luis de Vasconcelos e Souza em 1781, foi um lugar de preparação de espécimes brasileiros para em seguida serem enviadas à Europa.
É apontada como a mais antiga instituição científica do Brasil – e também um dos primeiros espaços de exposição.
Conhecido como Xavier dos Pássaros, o artista catarinense foi o responsável por sua administração, tendo sido também, anteriormente, assistente de Mestre Valentim.
Era assim chamado por seu exímio trabalho com penas e escamas.
Na Casa dos Pássaros empalhava os espécimes enviados de outras regiões, além de os dissecar e catalogar.
Com o fechamento da Casa, seu trabalho foi arquivado, e posteriormente incinerado.
Seu trabalho me faz lembrar os mantos Tupinambá, os quais seus últimos seis exemplares encontram-se em coleções europeias. São os últimos fantasmas de um povo já dizimado.
Ironicamente, a última vez que uma dessas peças esteve no Brasil, foi por empréstimo de um museu dinamarquês, para a comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses.
Os pássaros despertavam interesse nacional e estrangeiro.
Interesse colonial de conhecer o que havia aqui, para melhor explorar o que aqui havia.
O projeto de ocidentalização separa Humanidade e Natureza, divisão essencial para uma impiedosa exploração da Natureza e dos seus habitantes.
A colônia era um laboratório a céu aberto.
Era?
Sob o fogo da extinção não somos todos pássaros que gritam?
Quem grita e quem canta?